terça-feira, 29 de novembro de 2011

ALÉM DAS EVIDÊNCIAS




Não se deixe enganar por esses olhos claros que parecem lhe dizer. Tenho sim um lado Capitu. Enxergue, além das páginas, o que esses olhos realmente dizem. Tenho sim um lado felino. Algumas garras. Alguns poemas. Dezenas de sonhos e canções. E sete vidas.

Pra tentar compreender esses números é que escrevo. Porque minha vida é adimensional. Tenho um modo de contar que ninguém entende, mas não perco nem a conta, nem o canto e nem o conto. Engato a rima. Depois, me prendo ao desejo indomável que existe dentro de mim. Falo sem pausar porque há muito a ser dito. E porque sempre haverá mais. Palavras não se esgotam e, por isso, eu comemoro a vida. Continuo contando e cantando, até que alguém entenda minha nota ou some certo os meus numerais. Números, palavras e melodias não enganam. Mas eu...

Eu pertenço à classe dos que não têm classe. Sou da minoria e não da unanimidade. Eu me recuso a ser unânime, nem que seja pelo prazer de contrariar. Mas trago a sorte, posso garantir. A sorte, a vida e todo o resto que sorte e vida têm que acompanhar.

Pra falar desses restos dos quais sobrevivo é que escrevo. Pra que todos aceitem os meus números. Os meus valores. Os meus amores. Escrevo pra que todos saibam das sete vidas que me foram entregues e das outras tantas que inventei.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

AFINAÇÃO



Como arroz e feijão
A perfeita combinação
Soma de duas metades

Como feijão e arroz
Que só se encontram depois
De abandonar a embalagem

Mas como entender que os dois
Por serem feijão e arroz
Se encontram só de passagem?”

(da música PRATODODIA, de O Teatro Mágico)

Houve uma época em que eu acreditei naquela teoria esquisita que diz que os opostos se atraem. Mas é claro que essa fase utópica passou. Não me olhe estranho. Sim, é verdade. Eu já não creio que dois seres que caminham em sentidos contrários possam, algum dia, dividir a trilha. Já compreendi que água e óleo não se misturam. Já não vejo vantagem em estar com alguém que é de outra prateleira. Já não aceito falar dos meus sonhos e ver o outro desviar os olhos. Usando um vocabulário nada polido, vou sintetizar tudo: mesmo sendo farinha do mesmo saco já é tão difícil o “lado a lado”, imagine se for feijão com arroz?

Você acorda, vê um sol bonito iluminando a sacada, te dando bom dia e logo pensa que tem uma vida inteira lá fora esperando pra ser vivida. Não, hoje não é dia pra ficar dentro de um apartamento esperando o passar das horas ou assistindo a um jornal sem graça de fim de tarde. Hoje é dia de ir ao cinema, caminhar pelo parque, se sentir mais leve, praticar algum esporte, vestir roupas deselegantes e descer do salto. Hoje é domingo, dia de ser mais feliz.

Mas a pessoa que vive com você pensa que o domingo só começa depois do meio dia, que o almoço só precisa sair lá pelas três da tarde e que, em seguida, o melhor é se desmanchar no sofá pra assistir às finais dos campeonatos de futebol, a um telejornal e fechar o dia com um reality show na TV.

Vocês terminam em um almoço sem graça, tímido, calado e informal. Ele, obviamente, vai comer em frente à televisão. Não perderia por nada os primeiros minutos do primeiro tempo. Durante a tarde inteira, você tenta ler seus livros de poesia, mas sente-se incomodada pela voz enjoativa do locutor e pelas interjeições comemorativas que surgem, espontâneas, quando um gol é marcado. Você fecha a porta e... Por fim, um pouco de paz.

O perigo mora exatamente aí. Quando a paz é muito mais provável no momento em que se está longe. Convenhamos, não é pra isso que o amor foi feito.

Como não é minha intenção criar estereótipos, bem posso imaginar outra situação.

Você é super antenada em todas as notícias que dizem respeito à moda, make up e cores da estação. Sua maior alegria é renovar o guarda-roupa e caminhar no shopping da cidade, nem que seja por distração. Você tem uma caixa de esmaltes, é louca por sapatos e não perde, em nenhuma hipótese, a novela das nove.

Mas a pessoa que vive com você prefere saber tudo sobre os novos escritores, cineastas, desenhistas e bandas que surgem, todo dia, por aí. Ele ouve músicas que ninguém conhece e que, por sinal, são um tanto quanto esquisitas. Ele sonha em conhecer milhões de lugares novos e inexplorados, mas você se contenta com aqueles velhos pontos turísticos dos cartões postais.

Vocês terminam por dizer mil coisas um para o outro que, se listadas, não farão o menor sentido. A conversa deixa de ser um diálogo e se transforma em um par de monólogos. Como loucos falando sozinhos. Ao perceberem-se loucos, vocês optam pelo silêncio. É triste demais preferir o silêncio à conversa quando o interlocutor é aquele que você diz amar. Convenhamos, não é essa a função do amor.

Você pode pensar que estou generalizando. Afinal de contas, todo mundo é mesmo um pouco diferente. Se não fosse assim, não haveria troca, entrega, partilha. Fato é que também não haverá nenhuma espécie de troca quando os corações batem em ritmos diferentes. Quando a sua distração é o tédio dele. Quando você busca, no outro, qualidades que, pra ele, são defeitos. Quando portas fechadas e silêncio absoluto constituem a melhor maneira de manter a convivência. Isso não é amor, isso é comodidade.

Sei que ninguém no mundo se comportará como um espelho do que você é e espera que os outros sejam. Sei que as assimetrias servem pra que a gente tenha motivos pra se lapidar. Sei que, mesmo depois de todas as lapidações, o encaixe ainda não será totalmente perfeito. Mas sei também que amor é uma coisa meio específica. Não quero estimular ninguém a sair pelo mundo à procura do par ideal. Sinceramente, nem mesmo acredito que ele exista. Mas eu acredito e levanto, incansavelmente, a bandeira da afinidade. É preciso ser muito afim para se manter, ao longo da vida, a fim da companhia de alguém. É preciso se reconhecer no outro, em algum cantinho íntimo que o resto do mundo nunca viu.

Afinidade não é dizer as mesmas coisas e pensar exatamente igual com relação a tudo. Isso é igualdade. Notas iguais não formam acordes. Afinidade é ser a fim. A fim de. De ficar perto, de se compreender, de se aceitar, de se completar. Pra ter afinidade, não é preciso ter todas as semelhanças, mas é imprescindível estar na mesma sintonia. O coração precisa bater no mesmo ritmo. O amor é ritmado, não tem jeito. É como duas cordas entoando notas diferentes que, juntas, formam uma harmonia bonita. Acorde é junção de notas e amor é junção de gente. Mas uma coisa é certa: entre dó e si, tem sempre um punhado de notas que, se tocadas juntas, não combinam. Na junção dessas notas é melhor não insistir. Não existe uma regra matemática que defina aqueles que dão as mãos. Mas, pra resumir tudo o que eu queria dizer aqui hoje, vou usar as palavras mais simples: pra ser bonito, tem que estar afinado.