sábado, 15 de maio de 2010

JUÍZO FINAL



Eu poderia muito bem deixar tudo isso pra lá e me calar diante de tal situação aparentemente (ou, quem sabe, verdadeiramente) irreversível. Sim, eu sei que poderia. Poderia conter essa minha urgência louca, desmedida, atrapalhada, apressada, atropelada e sem razão. Eu sou assim mesmo, você já deveria ter se acostumado. Não me peça pra ser compreensiva ou maleável. Eu não consigo. Não sei te levar e não te levar a sério. Sou, por natureza, inconformada. E, enquanto houver direito ao grito, eu vou gritar. Sou, por natureza, revolucionária. Dentro de mim, há um coração batendo forte, acelerado e descompassado. Sempre foi assim. Meu amor explode aqui dentro e só, mas já te disse antes que isso era segredo.

Enfim, sei que poderia não fazer dessa saudade uma sentença pronta ou não transformar essas palavras, antes soltas, no nosso próprio juízo final. Já sei que você detesta esses papos, sempre detestou. E sei que poderia te causar intensa agonia e insegurança nesse momento, caso me calasse. Caso desaparecesse e evaporasse sem te deixar pistas ou vestígios. Você se espantaria e questionaria o que é que, afinal, me ocorreu. Afinal de contas, eu nunca me calei. Em hipótese alguma. Sempre gritei o mais alto que pude, mesmo que, muitas vezes, o som da minha voz não tenha chegado aí. Nenhuma realidade ou fantasia, mesmo que finalizada, me levou ao tal ponto final. Sempre segui exclamando. É minha essa mania de exclamar.

(Exclamo pra me mostrar e, por fim, te mostrar.)

Poderia te deixar sem notícias por semanas, te afogar no meu silêncio e responder, dessa forma, a tudo o que nos aconteceu. Mas sempre há algo a ser dito. Releve isso também, por favor. Estou muito acostumada (e acomodada pelo costume) a te dizer tudo. Foi assim que começou, não foi? Comigo te dizendo. E é assim, desse mesmo jeito torto, que te digo até hoje. E sigo dizendo. Tome essas palavras como suas, porque, dessa vez, elas realmente são. E, fique você sabendo: sempre foram. Entendo perfeitamente suas ocupações, sua falta de tempo, seus atrasos, seus amigos, suas vontades, seus desenhos, suas histórias, seus papos. Mas entendo também, e com ainda mais perfeição, que a sua vida não me cabe. Sei que poderia simplesmente entender isso e, com esforço sobrenatural, esquecer tudo o que foi dito até aqui. Mas não consigo, porque preciso dizer ainda mais pra sentir que tudo está mais claro e limpo.

(Palavras sempre limparam e esclareceram a minha vida.)

Poderia não dramatizar tanto o nosso caso, não insistir tanto nessa história, não usar tantas falas prontas pra te convencer. Poderia, pelo menos dessa vez, deixar de lado as minhas ceninhas. Aqueles dramas que, no fundo, só pedem atenção. Afinal, eu nunca fui mesmo uma boa atriz. Poderia engolir o choro algumas vezes, e fingir ser forte e corajosa. Pelo menos enquanto você estivesse por perto. Mas, a vontade de não te deixar ir antes de me ouvir toma conta da possibilidade de, sabiamente, ignorar todas essas realidades imutáveis às quais eu não tenho mais (se é que um dia tive) poder de mudar. Mas, entenda o que eu vou dizer: eu nunca fui uma boa atriz. Assim, eu usaria minha mudez pra assombrar o seu mundo, invadir sua casa, pesar sua consciência, atormentar suas mentiras, prolongar seus dias, enfatizar suas horas, quebrar seus vidros, explodir sua audição. Poderia ser sutil como o tiquetaquear do relógio e te emudecer com o som intenso e alto do silêncio que grita, em algum canto, dentro de mim. Poderia te trazer pra cá em meios segundos pelo azedo da minha ausência, mas eu insisto em querer que você esteja aqui pelo doce da minha presença. Talvez, ao longo dos anos, tal doçura tenha se perdido, se dissipado pelo universo, ou mesmo se transformado em leve e sutil amargura nos dias de inverno. Bem sei que poderia despistar. Mas, afinal, eu nunca fui mesmo uma boa atriz.

Queria que, lendo tudo isso, você me sentisse perto, da maneira com que sempre tentei, do meu jeito, estar. Mais perto do que nunca. Você já deve saber que eu não gosto de lero-lero. Quem me conhece, sabe. E eu espero que você também me conheça. Espero que, no meio de tanta gente, você ainda não tenha se esquecido de quem eu sou. Sei que sou irônica quando algo me aborrece. Sei que somos como ouriços tentando nos aproximar. É claro que isso nunca poderia dar certo. Já te adianto que não pretendo, nunca pretendi, te machucar com meus espinhos. Desejo, de coração, que minhas palavras não te tirem o humor ou a alegria. Sei que você é alegre e sua alegria me alegra também. Por isso, guarde tudo isso sem dor, “embora, em segredo, doa”.

O que eu quero te dizer, nesse momento, é que está se tornando cada vez mais difícil pra mim, viver de idealizações. E manter vivo um sentimento desse jeito está se tornando impossível. Não posso continuar arquivando tudo o que quero te dizer pra um dia qualquer. Isso não faz bem pra mim e, por isso, não pode fazer bem pra você também. Portanto, não queira que eu guarde palavras que me arranham noite e dia por medo de ser arranhado. Eu não tenho garras, mas também não tenho meias verdades. Minhas palavras são inteiras. E suas.

Pensei ser forte, mas percebi (e da pior forma possível) que não sou. Pelo contrário, sou uma menina frágil, de pouco mais que um metro e meio, tentando, a todo custo, ser dona de algumas verdades. Sou uma colecionadora de palavras e de notas que, articuladas, criam muito mais do que frases e músicas. Criam amores. E foi assim que eu te criei em mim.

(Um dia me disseram que só o criador pode destruir a criação.)

Até pensei que seria fácil me ausentar de você ou te ausentar de mim. Tanto faz no fim das contas. Mas, honestamente, eu me enganei. A psicanálise diz que há duas maneiras de matar alguém: fisicamente ou psicologicamente. A segunda possibilidade me causou um êxtase. Confesso que pensei ter encontrado uma solução pra tal caso de amor impossível, levemente inviável ou desastrado, quando ouvi isso. Bastaria te matar do modo indolor e sutil, sem te eliminar da vida, que você tanto ama. Bastaria te matar de mim. Me disseram que o processo era simples. Só precisaria eliminar tudo, sem exceção, dos seus restos que ficaram em mim. Música, foto, livro, poesia, carta, porta-retrato, sonho, cheiro, pó, segredo, endereço, telefone, nome. Tudo, exatamente tudo. Eu teria que perder a memória por você. Mas eu descobri que isso não poderia ser tão fácil. Há mais de você em mim do que eu supunha. Somos o paraíso um do outro e, juntos, somos nosso próprio paraíso. Particular.

Sei que já disse demais. E imagino que você já deve ter entendido tudo, se é que isso já não havia acontecido enquanto eu silenciava. Mas sempre foi uma característica minha prolongar os fins. Não sei de nenhum modo bonito pra finalizar uma carta assim. Mas prometo que você continuará aqui comigo por um longo tempo. Prometo compreender, com carinho, toda a sua história. Prometo seguir com esse amor explosivo dentro de mim. E prometo cumprir todas essas promessas. E prometo, com ainda mais fervor, prometer tudo de novo, quantas vezes for preciso.