terça-feira, 5 de outubro de 2010

RELATOS DE UMA ASSASSINA

Quisera eu dedicar um texto, do início ao fim, à prosopopéia. Quem sabe, então, caso obtivesse sucesso, faria da minha vida uma eterna personificação. As demais figuras de linguagem teriam espaço, mas nada seria tão intenso quanto o ato singelo de atribuir à todo tipo de ser as características que fazem de nós, humanos, seres supostamente racionais. Neste caso, a escolhida seria ela, desprovida de cérebro e de coração, a barata.

Essa não é uma fábula, mas qualquer um pode falar, sentir, sofrer e amar, basta querer. Essa não é uma ficção, mas tudo pode acontecer.

Encaro a folha em branco e nada me vem. Preciso de uma narrativa. Isso não pode ser tão difícil! Esse relato minucioso de tão árdua e sofrida tarefa já é, por si mesmo, uma narração. Que estou eu fazendo, senão narrando a você, caro leitor, que nada mais tem a fazer senão ler minhas frases, que nada mais são senão simples interrogações que, mesmo articuladas, parecem ainda não fazer sentido? Essa arte de contar é rara. Mas eu conto.

Creio que seja mais ou menos nesse momento da história que aparece a personagem principal. Peço perdão aos fatos caso eu esteja me precipitando, mas penso que já seja hora dela, a barata, aparecer. Juro que gostaria que ela estivesse em posição de mais prestígio, ao menos para entrar em cena. Mas não. Ela estava de pernas para o ar. Não sei se essa comparação é oportuna, mas eu também estava. Tudo em mim fazia bagunça. Coerência era a última palavra do meu dicionário que, devido à literatura romântica que folheei durante toda a juventude, era extenso. Talvez seja por essa ausência absurda de qualquer razão, que não fiz nada do que qualquer pessoa sã faria em meu lugar. Fiz o contrário. Eu gostava de contrários.

Sei que o meu amor, se estivesse ali, sentiria orgulho da mulher forte que eu era, ou pelo menos demonstrava ser naquele instante. Mas meu amor não estava. Prefiro assim, pra que ninguém pense que me fingi corajosa só pra impressionar. Estava sozinha, mas, ainda assim, não gritei. Não subi em nenhuma cadeira. Não supliquei por socorro. Não pensei em me render. Às vezes paro pra pensar e vejo que, mesmo se quisesse ser um pouco mulherzinha naquele momento, de nada adiantaria. Estava só, a sala era vazia, o bairro era pacato. Não havia cadeira sobre a qual eu pudesse repousar o salto, vermelho e fino que sustentava a minha magreza. Não havia ninguém em toda a Rua da Glória que pudesse ouvir meus gritos agudos de sofrimento e solidão. Não havia nenhum canto da sala que pudesse fantasiar meu medo. Eu teria que ser corajosa, simplesmente porque era a única opção que me restava.
Me aproximei da barata. Observei atentamente cada mínimo movimento das antenas daquela barata. Ela parecia se comunicar comigo e, talvez por isso, eu não pretendia fazer-lhe nenhum mal. Amizade era coisa que eu também não queria. Toda a Rua da Glória já me julgava suficientemente louca, eu não precisaria de mais um atributo de insanidade.

Tive vontade de prendê-la. Não sei ao certo o que faria com um bicho de estimação tão pouco amigável. Eu era só. Mas baratas nunca foram boa companhia. Ou foram? Bem, tanto faz. Ainda que fosse loucura, fui buscar um potinho de vidro, dentro do armário da cozinha. Tive medo de que ela escapasse pela fresta da porta. Já não sabia o quão frustrada ficaria caso me perdesse da barata ou ela se perdesse de mim. Já estávamos, nós duas, perdidas em um universo de almas desertas. E entre tantas almas, houve aquele encontro, cujas emoções em mim despertadas, eu carinhosamente chamei de amor. Qualquer um que tenha lido até aqui, concordaria que eu tinha sangue de barata.

O pote que encontrei era feito de um vidro bem espesso e tinha tampa azulada. Ele havia chegado à nossa casa na semana anterior, cheio de doce de leite. Mas agora ele estava vazio no armário da cozinha, esperando se fazer necessário para guardar qualquer bobagem em um dia qualquer. A barata não era uma bobagem. Era uma barata que estaria ali dentro, nos próximos minutos. Bom, pelo menos era isso que eu esperava. O mundo dava voltas. Nenhum pote guarda somente um tipo de doce. Aliás, nenhum pote guarda somente doces. Somos todos potes, à espera de algum conteúdo. O meu conteúdo era, portanto, um animal de aproximadamente cinco centímetros de comprimento, seis longas patas e um par de antenas que, aos olhos do mundo, eram asquerosas. Mas não aos meus olhos. Os meus olhos nunca foram os olhos do mundo.
Retornei ao quarto com o pote em mãos. Não estava pronta para dar um golpe, mas para propor uma amistosa relação. O que tínhamos em comum, repito: era o nosso sangue, o sangue de barata.

Não encontrei minha amiga no chão. Comecei a me desesperar. Me sentei perto da porta para esperar. Ouvi um barulho que se assemelhava a qualquer material frágil e quebradiço sendo esmagado. Foi naquele momento que experimentei a sensação de ser assassina. Não por maldade ou vontade própria. Acho que não. Mas, entenda, caro leitor: tentei mudar o destino da barata, mas não foi possível. Seria recriminada caso propusesse a ela uma amizade. Tive que matá-la, como em todos os casos de barata, ainda que involuntariamente. Insetos nunca têm final feliz. Nem eu.