Já é mais de meia noite. E eu aqui, te
relembrando e reconstruindo, com detalhes mínimos, uns poucos segundos que
passei ao seu lado. Faço tudo isso com a mesma inocência com que uma menina
revive mil vezes o momento do primeiro beijo antes de dormir. Reconstruindo
seus braços fortes na medida certa, o corte impecável do seu cabelo, a gola das
suas camisas bem passadas, o tênis limpo, os olhos de mistério sem vestígio,
seu sorriso absurdamente simétrico. Você e sua maldita posição social. Eu e
minhas ideologias regadas a sonhos baratos. Você e seu equilíbrio. Eu e minha
corda bamba. Você, seu jeito politicamente correto de ser e seu otimismo
invejável. Eu e meu estoque de angústias. Você, direita. Eu, esquerda. Pouco
importa. Só por hoje, não quero ouvir seu discurso e suas propostas elitistas,
típicas de quem nasceu em berço de ouro e coleciona camisas bem passadas. Só
por hoje, não quero insistir em dizer sobre as crianças da Ásia que trabalham
duro para colocar nos seus pés esse tênis limpo. Por hoje, e apenas por hoje,
não pretendo quebrar sua simetria admirável com meus versos tortos. É que hoje
tudo o que eu quero é morar nesses braços fortes, e fazer de conta que a tal
“medida certa” é também a minha medida.