Escrevo na tela em branco do
notebook enquanto ouço John Mayer dentro do meu quarto colorido pelo abajur
vermelho. E não sei porque, mas tudo isso me lembra você. E lembrar de
você me deixa absurdamente vulnerável e carente e propensa a te querer de novo
mesmo sabendo que hoje essa página em branco não aceita nada além de um ponto
final.
Encaro uma foto sua como se ela
fosse me dizer alguma coisa. Fico analisando sua cara de homem escondendo seu
coração de menino com a missão perpétua de descobrir o mundo. Fito seus olhos
estáticos só pra fingir que, do lado de dentro do monitor, você olha pra mim. Fico
investigando esses detalhes bobos, como a sua barba bem mais crescida do que na
última vez em que te vi. Fico lembrando de como éramos no começo, do seu rosto
liso e da minha franja, e do quanto era doce o que a gente sentia quando a sua
mão tocava por descuido a minha entre uma brincadeira e outra. E fico pensando
em como terminamos, você ainda tão menino querendo ser homem e eu tão mulher e ao
mesmo tempo tão criança. Queria voltar no tempo pra encostar com inocência minhas
unhas curtas na sua pele fina. Queria te convidar pra brincar só pra sua mão
encostar tão sem querer na minha e só pra sentirmos tudo aquilo de novo. Mas hoje
eu tenho unhas compridas, sua pele se tornou ligeiramente áspera e a gente de
repente começou a sentir uma vergonha esquisita de brincar.
Quero escrever sobre tudo isso, sobre
como deixamos de ser meninos e nos tornamos adultos (ou não), mas nossa história
parece não caber nesse papel. Oscilo entre me sentir boba por ainda pensar na
gente e me sentir boba por tentar escrever ao invés de sair daqui agora e ir
até você te perguntar se é isso mesmo que queremos afinal. Oscilo entre o meu
lado carente que queria morar nos seus versos e o meu lado orgulhoso que ameaça
fechar a tela. Entre o desejo de firmar o dedo indicador no backspace e o
desejo de bater na sua porta agora mesmo pra dizer que ainda aceito recomeçar.
A gente se perdeu no tempo, mas
nossas brincadeiras de infância nos colocaram de novo frente a frente. Eu
deixei de usar franja, sua barba cresceu. No fundo, ainda somos tão ou mais
crianças do que naquela época em que brincávamos no jardim sem suspeitar de que
já nos amávamos do lado de dentro. Nosso esconde-esconde tem quase as mesmas
regras. Só que hoje, adultos orgulhosos que somos, ficamos adormecidos na
contagem e ninguém tem coragem de sair pra procurar o outro. Nosso amor é quase
o mesmo, mas em algum momento explodiu e passou a morar também do lado de fora.
Talvez justamente quando sua barba começou a crescer e eu decidi ter unhas
compridas porque todas as meninas mais velhas tinham e porque eu queria ser
grande.
Antes de ir embora, solto todas pedras
no chão de barro pisado desse quintal e me desarmo. Quero mais é cortar de novo
minha franja e raspar sua barba, pra acreditar cegamente que a nossa história
infantil ainda beira o possível e pra fingir que ainda temos a pureza da época
em que nos tocávamos por descuido naquele jardim.