quarta-feira, 7 de agosto de 2013

INESCRUPULOSAMENTE IMPERFEITA E INDECENTE

Era uma manhã de domingo e ela tentava, de algum modo, se libertar da culpa. Era tão difícil cortar pela raiz algo que estava ali desde sempre, que nasceu ali, intocável e naturalizado dentro dela. Era como um aborto. Mas até livrar-se da culpa parecia trazer a tona outras culpas. A proibição latejava na memória e raspava o corpo. A culpa não tinha pés de barro.

A culpa por ser mulher. A culpa por ter sido uma criança esquisita. A culpa por detestar o próprio nome. A culpa por não ser igual aos pais e nem se parecer fisicamente com a mãe. A culpa por ter decidido ser atriz aos quinze anos e por ter saído de casa tão cedo. A culpa por transar no primeiro encontro e por não receber ligação no dia seguinte. A culpa por colecionar amores que não dão em nada. A culpa por ser olhada com malícia pelos olhos da rua. A culpa por ser mais bonita que a irmã e menos bonita quanto a colega de trabalho. A culpa por nunca receber um grande papel. A culpa por ser advogada por dinheiro e atriz por amor nas horas vagas. A culpa por ser ligeiramente ácida pela manhã e por não saber abraçar apertado. A culpa por nem sempre saber o que dizer e por não ter a solução na ponta da língua. A culpa por não sentir prazer com o marido todas as noites. A culpa por desejar a pele de outro homem e por saber que seu marido também deseja a pele de outra mulher. A culpa por sair de casa antes mesmo das crianças acordarem e por não chegar a tempo de dizer boa noite. A culpa por não ser a melhor mãe do mundo. A culpa por não cozinhar bem. A culpa por não ter dinheiro para matricular a filha no cursinho de balé da escola. A culpa por não aparecer sorrindo em fotos de família. A culpa por, vez ou outra, desejar em silêncio antes de dormir uma vida que não a sua.

Ela era ao mesmo tempo árbitro cruel e réu confesso. Era juíza de si mesma, regida por leis que ela jamais aceitou. Seguindo um contrato não assinado, só por conveniência ou comodidade. Mas naquela manhã de domingo ela não queria se culpar nem mesmo por não se sentir mais culpada. Queria tudo, menos o martírio. Só queria sair da cela. Só queria deixar de ver a sombra das grades desenhadas sobre o seu corpo ao por do sol.

Ela abriu a porta da sacada e rodopiou quinze vezes em cima da cadeira giratória do escritório com os pés erguidos sem sapatos. Ela enlouqueceu às claras. E mostrou as meias coloridas por baixo dos sapatos. E mostrou os cabelos desdenhados para além do coque outrora impecável. E mostrou o sorriso imperfeito por trás daquele tom sóbrio de batom. E mostrou a louca que existia escondida dentro daquele terno de linho opressor. E esvaziou-se da culpa. E viu aquelas grades derretendo. E viu aquele caldo preto escorrendo pelo ralo sem dor. E sentiu aquele cheiro de ferro fundido. E sentiu aquele gosto de fel. E soube que dentro dela brotava um sonho doce em algum lugar novo. E soube que naquele corpo pousava uma alma muito mais livre e inescrupulosamente imperfeita e indecente. E sorriu um sorriso bêbado e desengonçado – sem culpa alguma.