terça-feira, 24 de setembro de 2013

LUTO

Meus sentimentos pela perda de Denis Casagrande e minha solidariedade à família e aos amigos.

É estranho sofrer tanto pela perda de alguém que eu não conheci. É estranho esse luto contido que às vezes se materializa em uma lágrima tímida presa no canto do olho. Escrever sempre foi o jeito que eu encontrei de desembaraçar dentro de mim a minha coleção de novelos embolados. Foi o jeito que eu escolhi para organizar a minha desordem, mesmo sabendo que tudo há de se confundir de novo mais tarde. É minha sina.

Acho que não preciso resumir o caso. Você já conhece a história. O Brasil inteiro conhece Denis Casagrande, o estudante da UNICAMP que perdeu a vida, aos 21 anos, na última sexta-feira em uma festa no campus da universidade. Também não preciso te lembrar que, assim como o Denis, sou uma estudante da UNICAMP. Se você está aqui, provavelmente me conhece.

Eu não o conhecia. Já até me esforcei pra lembrar se não nos cruzamos qualquer dia desses no restaurante universitário ou na biblioteca central. Mas não. Eu nunca o vi. Mesmo assim, acho que as instituições ou grupos aos quais pertencemos acabam criando em nós (ou pelo menos em mim) uma sensação de coletividade que faz com que a perda de qualquer um do grupo, seja quem for, gere um desconforto próximo àquele causado pela perda de um amigo, mesmo que não passe de um desconhecido. Talvez por eu pensar que poderia sim ter cruzado com o Denis em qualquer cantina ou biblioteca da UNICAMP. Talvez por eu pensar que poderia ter ido a alguma festa organizada pela república em que ele morava e que ele estaria lá, cuidando do som ou das bebidas. Talvez por eu acreditar que poderia ter sido eu ou qualquer amigo meu ali, na hora errada e no lugar errado, morrendo exatamente no chão em que durante anos de ensino médio e cursinho sonhamos em pisar. Por alguma dessas razões, ou por uma mistura confusa de todas elas, tantas coisas bonitas em mim parecem ter morrido (ou pelo menos adormecido) junto com o Denis.

Morreu um pouco da minha ilusão de que aqui estou protegida, que insistia em sobreviver mesmo aos assaltos que meus amigos relatavam constantemente. Morreu um pouco do meu olhar doce para a universidade, que sempre me pareceu o lugar do mundo onde até hoje me senti melhor. Morreu um pouco da minha fé já desde antes abalada no ser humano e na sua bondade. Morreu a paz que eu sentia ao andar de chinelos, shorts e mochila nas costas entre um instituto e outro. Não por medo de ser atacada a qualquer momento, mas por uma espécie de luto que eu tenho a impressão de que não vai ter fim. Vai apenas se amortecer.

Fico pensando se esse luto existiria se um amigo do Denis também tivesse tido vontade de fazer xixi e tivesse ido ao banheiro com ele. Fico pensando como seria se ele tivesse entrado no banheiro um minuto depois ou um minuto antes. Ou o que teria acontecido se a fila do banheiro estivesse enorme e ele tivesse decidido fazer xixi no cantinho do gramado. A consciência de que a nossa vida se pendura nessas vírgulas que a gente acrescenta no meio da história me torna impotente diante de mim mesma, vulnerável até mesmo à loucura do outro. Pensar que pessoas vão a festas com uma faca no bolso e que um menino de 21 anos morre por motivos que simplesmente não são motivos e que talvez nem sequer sejam verdades me assusta. A morte do Denis estourou a bolha em que eu acreditava que vivia e me mostrou o quão elitista e equivocado é acreditar que estamos salvos por estarmos aqui. E, honestamente, me deixa sem a mínima vontade de levantar amanhã e ir à universidade e voltar pra casa e continuar encarando a vida como ela é.

Nunca estamos preparados para a morte. Quando apagamos as luzes de casa e trancamos a porta, sempre acreditamos que no fim do dia estaremos de volta para terminar o relatório que ficou em cima da mesa, guardar a roupa que ficou jogada na cama ou responder o e-mail que ficou pendente. Nunca imaginamos que alguém vai entrar no nosso quarto para recolher o que é nosso. Nunca paramos pra pensar que, no fundo, nada nos pertence. Da mesma forma, nunca supomos que uma ligação pode ser a última, que um “até logo” pode ser “adeus”, que um beijo pode ser o último contato. A gente nunca, mas nunca mesmo, imagina que vai a uma festa com um amigo, que ele vai dizer que quer dar uma volta e não vai mais voltar. Nunca passa pela cabeça de um pai e de uma mãe que a vida pode ser cruel o suficiente para obrigá-los a enterrar o próprio filho. No fundo, a gente sempre conta com o amanhã, mesmo sabendo que viver é andar em corda bamba.

O nosso despreparo diante do adeus é evidente. A UNICAMP procura os responsáveis pela festa para penalizá-los academicamente, fingindo não saber que festas assim sempre aconteceram semanalmente apesar de qualquer proibição. Em nota, a universidade diz que os participantes invadiram o campus, mas não explica porque não tentou impedir que as três mil pessoas continuassem festejando noite adentro já que era proibido. O noticiário diz que foi um crime passional, mesmo que todos os amigos e familiares garantam que o Denis jamais se envolveria em uma briga por uma menina totalmente desconhecida. A mídia fala em “briga generalizada”, mas algo me diz que dar uma facada no peito de alguém simplesmente anula a possibilidade de o outro participar de qualquer briga. Agora já estão falando em legítima defesa, mas ninguém explica porque um dos agressores também levou uma facada na perna. A sucessão de histórias mal contadas nos confunde e atesta nosso despreparo para lidar com o fim, principalmente quando ele vem tão precoce e sem razão.

Despreparados, fragilizados e cada vez mais desassossegados, procuramos culpados insistentemente. Queremos saber quem deu a facada, quem chutou, quem bateu com skate, quem negou socorro. A UNICAMP procura os responsáveis pela festa. Os alunos questionam a violência do distrito em que se localiza a universidade. A morte do Denis atesta a fragilidade da nossa existência, a vulnerabilidade a que somos submetidos até mesmo onde acreditamos estar seguros e, sobretudo, a patologia (essa sim, generalizada) que marca o que chamamos de sociedade. O pior de tudo é saber que para isso não há remédio imediato. Tragédias vão continuar acontecendo mesmo quando prenderem o assassino, mesmo quando a UNICAMP se tornar mais rígida diante daquilo que afirma ser proibido por pura conveniência. O pior é pensar que um caminho se encerra antes da hora e que sobre isso nada pode ser feito ou refeito.

Os últimos dias têm me dado uma sequência de socos no estômago. A morte trágica de um desconhecido me fez acordar para o fato de que não estamos salvos.  De que não conhecemos e nem dominamos o amanhã. De que, na adversidade, uma instituição nada mais faz do que esquivar-se de qualquer culpa e transferi-la ao lado mais fraco. De que há mais gente má no mundo do que eu podia supor. E de que essa maldade tem raízes muito mais profundas do que minha vã compreensão do mundo pode explicar.

No fundo, o que eu finalmente entendi é que essa fruta não está só com a casca feia. A fruta está podre.