Meus sentimentos pela perda de Denis Casagrande e minha solidariedade à família e aos amigos.
É estranho sofrer tanto pela perda de
alguém que eu não conheci. É estranho esse luto contido que às vezes se
materializa em uma lágrima tímida presa no canto do olho. Escrever sempre foi o
jeito que eu encontrei de desembaraçar dentro de mim a minha coleção de novelos
embolados. Foi o jeito que eu escolhi para organizar a minha desordem, mesmo
sabendo que tudo há de se confundir de novo mais tarde. É minha sina.
Acho que não preciso resumir o caso.
Você já conhece a história. O Brasil inteiro conhece Denis Casagrande, o
estudante da UNICAMP que perdeu a vida, aos 21 anos, na última sexta-feira em
uma festa no campus da universidade. Também não preciso te lembrar que, assim
como o Denis, sou uma estudante da UNICAMP. Se você está aqui, provavelmente me
conhece.
Eu não o conhecia. Já até me esforcei
pra lembrar se não nos cruzamos qualquer dia desses no restaurante
universitário ou na biblioteca central. Mas não. Eu nunca o vi. Mesmo assim, acho
que as instituições ou grupos aos quais pertencemos acabam criando em nós (ou
pelo menos em mim) uma sensação de coletividade que faz com que a perda de
qualquer um do grupo, seja quem for, gere um desconforto próximo àquele causado
pela perda de um amigo, mesmo que não passe de um desconhecido. Talvez por eu
pensar que poderia sim ter cruzado com o Denis em qualquer cantina ou
biblioteca da UNICAMP. Talvez por eu pensar que poderia ter ido a alguma festa
organizada pela república em que ele morava e que ele estaria lá, cuidando do
som ou das bebidas. Talvez por eu acreditar que poderia ter sido eu ou qualquer
amigo meu ali, na hora errada e no lugar errado, morrendo exatamente no chão em
que durante anos de ensino médio e cursinho sonhamos em pisar. Por alguma
dessas razões, ou por uma mistura confusa de todas elas, tantas coisas bonitas
em mim parecem ter morrido (ou pelo menos adormecido) junto com o Denis.
Morreu um pouco da minha ilusão de que
aqui estou protegida, que insistia em sobreviver mesmo aos assaltos que meus
amigos relatavam constantemente. Morreu um pouco do meu olhar doce para a universidade,
que sempre me pareceu o lugar do mundo onde até hoje me senti melhor. Morreu um
pouco da minha fé já desde antes abalada no ser humano e na sua bondade. Morreu
a paz que eu sentia ao andar de chinelos, shorts e mochila nas costas entre um instituto
e outro. Não por medo de ser atacada a qualquer momento, mas por uma espécie de
luto que eu tenho a impressão de que não vai ter fim. Vai apenas se amortecer.
Fico pensando se esse luto existiria se
um amigo do Denis também tivesse tido vontade de fazer xixi e tivesse ido ao
banheiro com ele. Fico pensando como seria se ele tivesse entrado no banheiro
um minuto depois ou um minuto antes. Ou o que teria acontecido se a fila do
banheiro estivesse enorme e ele tivesse decidido fazer xixi no cantinho do
gramado. A consciência de que a nossa vida se pendura nessas vírgulas que a
gente acrescenta no meio da história me torna impotente diante de mim mesma,
vulnerável até mesmo à loucura do outro. Pensar que pessoas vão a festas com
uma faca no bolso e que um menino de 21 anos morre por motivos que simplesmente
não são motivos e que talvez nem sequer sejam verdades me assusta. A morte do
Denis estourou a bolha em que eu acreditava que vivia e me mostrou o quão
elitista e equivocado é acreditar que estamos salvos por estarmos aqui. E,
honestamente, me deixa sem a mínima vontade de levantar amanhã e ir à
universidade e voltar pra casa e continuar encarando a vida como ela é.
Nunca estamos preparados para a morte. Quando
apagamos as luzes de casa e trancamos a porta, sempre acreditamos que no fim do
dia estaremos de volta para terminar o relatório que ficou em cima da mesa,
guardar a roupa que ficou jogada na cama ou responder o e-mail que ficou
pendente. Nunca imaginamos que alguém vai entrar no nosso quarto para recolher o
que é nosso. Nunca paramos pra pensar que, no fundo, nada nos pertence. Da
mesma forma, nunca supomos que uma ligação pode ser a última, que um “até logo”
pode ser “adeus”, que um beijo pode ser o último contato. A gente nunca, mas
nunca mesmo, imagina que vai a uma festa com um amigo, que ele vai dizer que
quer dar uma volta e não vai mais voltar. Nunca passa pela cabeça de um pai e
de uma mãe que a vida pode ser cruel o suficiente para obrigá-los a enterrar o
próprio filho. No fundo, a gente sempre conta com o amanhã, mesmo sabendo que
viver é andar em corda bamba.
O nosso despreparo diante do adeus é
evidente. A UNICAMP procura os responsáveis pela festa para penalizá-los
academicamente, fingindo não saber que festas assim sempre aconteceram
semanalmente apesar de qualquer proibição. Em nota, a universidade diz que os
participantes invadiram o campus, mas não explica porque não tentou impedir que
as três mil pessoas continuassem festejando noite adentro já que era proibido.
O noticiário diz que foi um crime passional, mesmo que todos os amigos e
familiares garantam que o Denis jamais se envolveria em uma briga por uma
menina totalmente desconhecida. A mídia fala em “briga generalizada”, mas algo
me diz que dar uma facada no peito de alguém simplesmente anula a possibilidade
de o outro participar de qualquer briga. Agora já estão falando em legítima
defesa, mas ninguém explica porque um dos agressores também levou uma facada na
perna. A sucessão de histórias mal contadas nos confunde e atesta nosso
despreparo para lidar com o fim, principalmente quando ele vem tão precoce e
sem razão.
Despreparados, fragilizados e cada vez
mais desassossegados, procuramos culpados insistentemente. Queremos saber quem
deu a facada, quem chutou, quem bateu com skate, quem negou socorro. A UNICAMP
procura os responsáveis pela festa. Os alunos questionam a violência do
distrito em que se localiza a universidade. A morte do Denis atesta a fragilidade da nossa
existência, a vulnerabilidade a que somos submetidos até mesmo onde acreditamos
estar seguros e, sobretudo, a patologia (essa sim, generalizada) que marca o
que chamamos de sociedade. O pior de tudo é saber que para isso não há remédio
imediato. Tragédias vão continuar acontecendo mesmo quando prenderem o
assassino, mesmo quando a UNICAMP se tornar mais rígida diante daquilo que
afirma ser proibido por pura conveniência. O pior é pensar que um caminho se encerra
antes da hora e que sobre isso nada pode ser feito ou refeito.
Os últimos dias têm me dado uma sequência
de socos no estômago. A morte trágica de um desconhecido me fez acordar para o
fato de que não estamos salvos. De que
não conhecemos e nem dominamos o amanhã. De que, na adversidade, uma
instituição nada mais faz do que esquivar-se de qualquer culpa e transferi-la
ao lado mais fraco. De que há mais gente má no mundo do que eu podia supor. E
de que essa maldade tem raízes muito mais profundas do que minha vã compreensão
do mundo pode explicar.
No fundo, o que eu finalmente entendi é
que essa fruta não está só com a casca feia. A fruta está podre.