terça-feira, 13 de julho de 2010

CONTOS E CANTOS


Vivo me escrevendo. Me descrevendo. Vivo virando letra. A minha casa é a sintaxe. A minha frase não tem vocativo. Minha frase é sua, quase sempre sua. Mas, vez ou outra, não é. É que vivo me fraseando, me parafraseando. É essa a minha sina: engendrar contextos. E eu cumpro.

Quando sou frase, minha meta é trocar a ordem das palavras. Eu, que nunca soube contar, não tenho numerais. Meus advérbios, especialmente aqueles de intensidade, oscilam sem pensar. E eu, à mercê desses advérbios, por vezes violentos, outras vezes apaixonados, mas sempre com alguma alucinação, fico totalmente rendida. A despropósito, essa luta é meio desigual. Não há um modo certo de lutar contra o que me domina. O advérbio da vez sempre acaba vencendo. Mas os adjetivos não mudam. Eu continuo a mesma. Sem disfarces. Continuo tentando ser dona. De verdades. De histórias. De amores. De palavras. De sonhos. E do meu próprio universo, que é e sempre será o pais de maravilhas. Os substantivos, sempre abstratos. O comum cansa, o simples também. O concreto então, enjoa. Sempre tive certa recaída pelo que não existe.

Mas, quanto a mim, sou histérica. Sou histórica. Não sou lúcida, mas ainda sou legível. Prefiro ser o sujeito da minha própria oração. Sobre os meus traços, não deixo pistas. Não me obrigue a apagar o que foi escrito porque, uma vez apagado, nunca mais te reescrevo. Escrevo forte, eu sei. Dizem que é característica dos gênios indomáveis. Talvez seja. Mas que fique claro que, ainda que eu tenha marcado todas as próximas folhas com o que escrevi, se um dia eu tiver que apagar tudo, não deixo marcas. E nem escrevo de novo. O que eu apago é passado. As palavras enchem meu coração de presente e futuro. O passado é só relato.

Por estar sempre em dúvida quanto ao verbo perfeito, vivo me transformando. Acho que vivo exatamente pra isso: pra me transformar. Nos últimos tempos, tenho me transformado, principalmente, em palavras. Em versos. Em estrofes. Em parágrafos. Em rimas. Talvez isso revele o que eu realmente sou. Talvez eu seja poeta. Vivo ritmada na minha própria canção. Vivo dentro ou fora do compasso, mas sempre recupero o tempo.

O segredo é que estou sempre me encaixando perfeitamente nas vidas que imagino e digo serem alheias. Mas, na verdade, não são. Cada vida nova que surge aqui dentro é, em partes, a minha própria vida. Cada terceira pessoa que cabe na minha prosa é, no fundo, um pouco da primeira pessoa. Terceira e primeira pessoa, nessa oração, já não sabem viver separadas. Já não sou nada sem os infinitos outros que existem em mim e que se multiplicam a cada vez que me deparo com a folha em branco. É que, a cada vez que escrevo, chego um pouco mais perto daquilo que eu sempre quis ser. Deixo parte de mim no ar, dispersa, dissipada ao bel-prazer do universo. Vôo rumo àquilo que mais me agrada, que mais se aproxima dos meus sonhos, das minhas utopias, das minhas miragens, da minha miopia. Viro etc. Já não faço questão de me contar. Tudo vira encanto e eu só canto. Não me sobra nenhuma molécula de sanidade. Me deixo enganar por esses personagens que me rondam e me t r a n s f o r m o.

Essa liberdade inconseqüente que voa ao meu redor explica tudo. E é por isso que faço tanta questão de ser livre. Sempre procurei por explicações. Escrevendo, eu me explico pra mim mesma. Finjo ter descoberto os mistérios da vida e acredito nas minhas versões. Escrevendo, eu entendo o passado, aceito o presente e prevejo o futuro com os mesmos olhos molhados de luz. Comparo minha vida com uma miragem. O presente, que divide o passado e o futuro, é exatamente a linha do horizonte que divide o céu e o mar. Me deparo com cada pedaço meu como se fosse peça única de um quebra-cabeça que poucos se atrevem a tentar montar. Mas, escrevendo, eu me atrevo. Admiro o que sou. Vejo meu perfil reluzindo nos textos. Porque eu fico mais bonita quando redijo. Conto dos meus amores e desamores através de mil nomes bonitos. Por isso, vivo tropeçando em mim mesma em cada linha. Vivo me encontrando, com ar de surpresa, casualidade ou coincidência, nos casos e nos caos que invento. Vivo me vestindo de personagens irreais, só para me proteger. Vivo me encaixando nos contos. Vivo me escondendo atrás do que não existe tentando, quem sabe, constatar a própria existência. Vivo observando o mundo com olhos de criança e acreditando que cada mínimo detalhe é dádiva. Já disse antes sobre o mundo de maravilhas do qual disponho. É nesse mundo que vivo. E é desse jeito louco e poeta que eu quero viver. Eis-me.