São sete da noite de uma quinta-feira
fria na tal cidade grande. Depois de horas analisando todas as peças brancas do
armário, opto por um vestido um pouco acima dos joelhos em laise. É uma festa
de engenheiros, o que deixa claro que não posso ir vestida como bem entender. Eu
já equipei a bolsa e o coração. Mas o ingresso não deixa dúvidas: início às 23h.
Eu não sabia o que fazer entre sete e onze da noite. Assisti a algumas
porcarias na tevê até as nove. Certo, agora já é um bom momento para começar a
maquiagem. Corretivo, base, pó, blush, lápis, sombra, rímel, batom, gloss. Mais
pó. Mais rímel. Ainda me reconheço? Sim. Então mais sombra. Tudo certo. Ainda
são 21h30 e eu não sei o que fazer entre nove e meia e onze da noite. Entro na
página do facebook destinada à balada só pra passar o tempo. Mais de quatro mil
pessoas com presença confirmada. Nunca estive no Campinas Hall, mas por alguma
razão não acredito que lá seja espaçoso o suficiente pra comportar quatro mil
pessoas com conforto. Mas quem é que liga pra conforto afinal?
Agora são 22h e eu começo a pensar se
não seria muito mais legal estar de pijamas e pantufas ao invés de usar um
vestido sem mangas numa noite tão fria. Evito tentar responder. Minha amiga
disse que ir com roupa de inverno na balada é coisa de velho. Por mim, eu iria.
Por dentro tenho sessenta anos desde que nasci. Mas, afinal, preciso tentar
mudar. Pra começar, preciso esquecer de que estou com frio. Agora são 22h30 e
ainda não está nem perto da hora de sair de casa. Afinal, eu tenho a sorte
(sorte?) de morar a cinco minutos do tal Campinas Hall, o que só atrasa a minha
saída e aumenta minha agonia. Daqui a trinta minutos os malditos portões vão se
abrir e eu vou entrar louca pra ser feliz ao lado de quatro mil pessoas. Daqui
a pouco minha amiga vai me ligar pra avisar que já saiu de casa e eu farei o
mesmo. Os portões mágicos vão se abrir e eu vou experimentar a felicidade mais
falsa do mundo. Não, nada disso. Eu também posso ser feliz como todo mundo.
São 23h em ponto. O telefone não toca.
Começo a morrer de vontade de limpar essa maquiagem toda, tirar este cheiro
forte de perfume doce da minha pele e dormir. Sempre tive sono cedo, não nasci
pra essa vida. A quem estou tentando enganar? Daria tudo pra estar na minha
cama, onde eu certamente seria feliz do meu modo. Finjo que não ligo pra nada
disso e volto a vasculhar a página do evento no facebook. Agora já são quase
cinco mil pessoas confirmadas, o que desperta em mim uma claustrofobia que
sequer me pertence. Os organizadores da festa acabaram de postar na página e
disseram que vão vender mais ingressos na portaria. Eu me desespero. Que nada!
Tudo certo. São 23h25 e o telefone finalmente toca. Minha amiga está a caminho
e agora eu já não posso desistir. Minha maquiagem já não está bonita como há
duas horas. Vai ser legal, eu digo pra mim mesma um milhão de vezes. Li em
algum lugar que uma mentira dita muitas vezes vira verdade. Quem foi que disse
isso mesmo? Claro, um dos líderes políticos do nazismo. De que isso importa
agora? O nazismo, a mentira, a verdade... Não importa. Pego minha bolsa e vou
ser feliz. Mas espera. Vou levar uma blusinha de manga comprida, só por
precaução. Dizem que uma mulher prevenida vale por duas. Vou estar com o
coração em dobro nesta noite. Mas espera. Não sei se lá tem comida e não posso
ficar mais de três horas sem comer. Ataco o pote de barras de cereais e coloco
no fundo da bolsa, só por precaução. Minha amiga também disse que comer na
balada é coisa de velha. Saio de casa com o coração na mão. No fundo, uma
vontade angustiante de trocar a pista de dança pelo meu colchão. Mas eu estou
maquiada com rímel, batom e vontade de ser feliz como todo mundo.
Já é quase meia noite e eu estou
finalmente “na balada”. Os portões mágicos já estão abertos e a fila pra entrar
é muito maior do que eu supunha. Na fila feminina, os vestidos são
aproximadamente do mesmo comprimento daqueles que eu usava quando tinha dez
anos. Os saltos 15 fazem com que eu, que não chego a 1,60m e uso um sapato de
pouco mais de quatro centímetros, me sinta uma anã que, por sorte, cresceu um
pouquinho além das expectativas. Ficamos eu e meu ingresso esperando a hora de
entrar.
Pronto. Já é meia noite, hora de festa
de gente grande começar. Por um minuto, sinto saudades das festas infantis que
começavam às sete da noite e tinham salgadinhos e docinhos à vontade. Queria
trocar o open bar por open food. Mas agora já estou dentro da festa e não há
como voltar atrás. Das cinco mil pessoas com presença confirmada, já chegaram
umas duas mil e a pista já está cheia de corpos em movimento. Eu sou só mais um
átomo deste organismo. Paguei R$25 e não tenho direito a sequer um metro
quadrado para me movimentar. Tem uma dupla no palco usando calças jeans mais
justas do que as minhas e tocando aquilo que costumam chamar de sertanejo
universitário. As pessoas parecem ter as letras das músicas na ponta da língua,
mas eu, que obviamente não sou deste planeta, não conheço sequer um refrão.
Começo alternando o peso do corpo entre uma perna e outra. Aos poucos, solto os
ombros, mas não demais. Pessoas passam por mim o tempo todo. No início, fico
incomodada a cada vez que pisam no meu pé e mais ainda quando não pedem
desculpas. Depois me acostumo. Tento fazer um comentário qualquer com minha
amiga, mas ela não escuta nada porque o som está absurdamente alto. Repito. Ela
continua não ouvindo. Deixa pra lá. Conversar pra que? Bobagem. Estamos na
balada!
Encontro um amigo que, como eu, parece
um pouco desconcertado. Tentamos conversar, mas eu mal consigo pensar em
qualquer coisa com uma música tão alta socando meus neurônios. Eu me desculpo,
explico a velha história de que por dentro tenho sessenta anos, que não sei o
que estou fazendo naquele lugar e digo que nos falamos melhor em outra
oportunidade.
Já é 1h30 da manhã e estou cansada, com
sono e com fome. Um cara vem pedir pra
dançar comigo. Imagina! Eu pisaria no seu pé, justifico. Eu não sei dançar,
insisto. Tá, eu detesto dançar, pronto. Eu não mordo, ele diz. Tento me
afastar. Perto de mim, casais se formam em menos de cinco minutos. No caminho
para o banheiro, que é quase como uma viagem com trânsito congestionado, um
homem de mais ou menos 1,80m, braços fortes e beleza viril barra minha passagem
com o corpo e diz alguma coisa que eu não entendo. Peço pra repetir. Será que a
gente podia conversar? - ele pergunta. Não, definitivamente não vai dar pra
conversar. Eu mal escuto o que você diz. É uma pena. É só uma conversa, ele
insiste no meu ouvido. Sou teimosa e adoro autossabotagem, então digo que não
dá e sigo em frente. É claro que não demorei muito pra me arrepender, mas
afinal o mundo não está perdido. Estou na balada.
No fim das contas, já estava mexendo o
corpo de uma maneira menos desajeitada. Por incrível que pareça, já não estava
mais tão chato. Vou até o bar pegar uma água. Preciso gritar umas três vezes
que quero água pra que a garçonete escute. Quando ela finalmente escuta, parece
não acreditar. Água? Água pura? Bem, pensando melhor, pode ser água com açúcar
pra acalmar os nervos. Mas vamos sintetizar o pedido porque dialogar neste
lugar beira o impossível. Sim, água pura. Recebo outra proposta pra conversar.
Bem, o que há de mal em conversar? Pois bem. Vamos conversar. Antes de querer
saber meu nome, o cara quis saber por que eu bebia justamente água. Depois de
filosofarmos um pouco sobre água e vodka, finalmente chegamos à parte de trocar
nomes. Mas cá entre nós, são três da manhã e pra mim chega. Eu já me diverti
demais e é hora de ir pra casa. Eu me despeço dele tão subitamente quanto a
ideia de ir embora me ocorreu. E me despeço da minha amiga, que ainda vai
dançar até cinco da manhã em cima de um salto de quinze centímetros.
Volto pra casa pensando na festa. Foi
legal. Podia ter menos gente, é claro. A música bem que podia estar mais baixa.
E devia ter uma mesa de salgadinhos. De resto, foi tudo lindo. Eu bem que podia
ter me esforçado um pouco mais e conversado com aquela beleza viril que parou
na minha frente. Podia ter dançado com alguém. Tudo bem, dançar sertanejo
universitário não é lá minha especialidade, mas eu bem que podia ter me
entregado mais. Volto pra casa revendo meus conceitos. Não preciso ser assim
tão séria. Não preciso passar o resto da vida presa a convenções, tentando
separar minimamente o que é e o que não é aconselhável. No mês que vem o
Campinas Hall talvez me veja novamente. E eu juro que vou ser feliz.