domingo, 17 de outubro de 2010

A HISTÓRIA DA DONA DA HISTÓRIA

Desde os tempos mais remotos, homens e mulheres se diferem não apenas pelo sexo, mas pelas posições que ocupam na sociedade. Ao longo dos anos, séculos e milênios de ocupação humana na Terra, os papéis se modificam, os conceitos se transfiguram e os preconceitos são parcialmente superados. A sociedade está em constante processo de transformação. A verdade é que tudo o que existe se transforma e, por isso, a sociedade é a própria metamorfose. A história da mulher é regada a lutas, conquistas e evoluções. Até o momento, ninguém venceu a guerra dos sexos. Tudo o que foi conquistado até aqui em prol da igualdade foi fruto de um longo processo que ainda não terminou. A cada dia, os gêneros se aproximam um pouco mais. Homens e mulheres estão sempre mais prontos para caminhar em pista dupla. Mas não foi sempre assim.

A mulher, condenada a uma árdua prisão dentro de si, vivia delimitada pelo cárcere do lar, pelo próprio casulo, pelas supostas limitações físicas. Ela, a mulher, via-se obrigada a sonhar com pouco e a ver o pouco com que sonhava nunca se concretizar. Mulher é rasa.

O homem, definitivamente dono do título de sexo forte, vivia solto no universo, pronto para desafiar a vida e os limites que ela, vez ou outra, lhe ousava impor. Ele, o homem, via-se obrigado a carregar o peso dos seus cargos e a ser o próprio peso do mundo. Homem é denso.

A história dos sexos começa. O homem vai à caça e a mulher põe à mesa. O homem se transforma em pai de família e a mulher educa os filhos. O homem constrói a casa e a mulher organiza o lar. O homem atravessa o globo e a mulher decifra os cômodos. O homem viaja pelo planeta e a mulher viaja dentro de si. O homem faz a novidade e a mulher, com olhos curiosos, aprecia. O homem guarda o “mundo afora” e a mulher aguarda a hora. Mas a hora chega.

O tempo passa. A mulher, que outrora preparou o jantar, cuidou das crianças, organizou a casa e admirou o marido, parece não mais se conter dentro do seu caminho. O destino de Marias, Cecílias, Rosanas, Carolinas, Julianas, Rebecas e infinitas outras donzelas já não lhes basta. A casa, os filhos, o marido, a família e a rotina já não são suficientes. O pó da casa passa a empoeirar a alma. O corpo, também empoeirado, precisa ser observado com mais atenção. A mulher quer opções de escolha. Quer ter direito de decidir a sua direção. Quer dirigir seu próprio filme, redigir o roteiro, controlar o enredo, escolher o elenco, se envolver com a trama. A mulher já não cabe no seu destino e já não aceita as velhas tradições que a sociedade lhe impõe. A mulher quer mais.

A redoma se quebra. O homem, que outrora abasteceu a família, garantiu a descendência, providenciou seu teto, traçou suas rotas e foi contemplado pela esposa, parece perder, pouco a pouco, a sua soberania. Os preconceitos se esvaem. A mulher se cansa de aceitar as regras, de assistir a vida e assistir ao homem. Ela definitivamente não mais se contenta com o papel monótono e rotineiro de sempre dar assistência. O homem se vê obrigado a conhecer e reconhecer a figura feminina. A força e superioridade do chefe de família são colocadas em dúvida. A mulher, cansada de ser apenas a dona do lar, passa a lutar para ser a dona de si: a dona do seu corpo, dos seus desejos, dos seus amores, das suas ilusões e das suas verdades.

O trajeto feminino não foi e não é fácil. A mulher caminha de encontro a si mesma, percorrendo uma estrada de obstáculos. Mas, apostando em um futuro exclusivamente seu, ela encara as dificuldades e desafia a suposta fragilidade do seu sexo. A estrada que leva à independência e à igualdade é árdua: a mulher precisa abandonar toda uma história sofrida de séculos e séculos de submissão. Mas ela consegue. Ela cala o passado e grita por um futuro de poesia. Se torna a senhora do seu destino e prova que o sexo frágil carrega consigo uma força única. Prova para si mesma e para o mundo que é capaz de dividir com o homem as contas, o ambiente de trabalho e os cargos importantes. A mulher está, pela primeira vez, em suas próprias mãos. Ela escolhe seus representantes políticos, sua profissão e escolhe, inclusive, como, quando e para quem vai se doar. Ela quebra as barreiras. Assume seus passos e seus pedaços. Se assume por inteira e se ama. Ela descobre, dentro de si, coragem suficiente para se libertar. Entende que é justamente dentro dela que acontece o milagre da vida. Percebe que pode ser mil. Ou melhor: percebe que é infinita.

O homem resiste. Será possível que aquela que viveu anos e anos dentro de uma gaiola é agora a senhora do seu destino? Surge a pílula anticoncepcional, levantando a bandeira da liberdade sexual. A mulher agora vota. Dirige. Estuda. Trabalha. Paga a conta. Abre o jogo. Ela transforma o amor em um ato de liberdade e coragem. A mulher agora ama.

Chega a hora da reflexão: a mulher, em frente ao espelho, pergunta para si mesma no que, afinal, ela se transformou. Por quantas mulheres a mulher já teve que passar? Que mulher é a mulher de hoje? O resultado dessa passeata rumo à liberdade, ao reconhecimento e à independência feminina é a mulher que não espera acontecer. Aquela que pendura na parede um diploma de curso superior. Aquela que faz entrevista de emprego em empresas importantes, sem ser olhada dos pés à cabeça. Aquela que disputa vagas de trabalho em concursos públicos e obtém resultados tão ou mais satisfatórios do que o homem. Aquela que detém de um poder único ou um dom imensurável: o de ser mãe. Aquela que ainda tem tempo para ensinar aos filhos como é que se vive. Aquela que usa maquiagem e salto alto. Aquela que se declara sem medo. Aquela que sabe conversar sobre política. Aquela que toma a iniciativa. Aquela que se admira. Aquela que pára o trânsito. Aquela que exige momentos inteiros. Aquela que, apesar de tudo, nunca abandonou os feminismos e nem deixou de ser mulher. Pelo contrário: aquela que é mais mulher do que nunca. Aquela que é a dona da história.


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ps: Dedico esse texto à todas as mulheres da minha vida. À todas que entram procurando um pedaço de si nas entrelinhas. À todas que usam meus textos nos perfis do orkut. À todas que me deixam recados lindos que me fazem querer escrever mais e mais. Hoje, sei que não escrevo só pra mim. E isso me faz muito feliz.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

RELATOS DE UMA ASSASSINA

Quisera eu dedicar um texto, do início ao fim, à prosopopéia. Quem sabe, então, caso obtivesse sucesso, faria da minha vida uma eterna personificação. As demais figuras de linguagem teriam espaço, mas nada seria tão intenso quanto o ato singelo de atribuir à todo tipo de ser as características que fazem de nós, humanos, seres supostamente racionais. Neste caso, a escolhida seria ela, desprovida de cérebro e de coração, a barata.

Essa não é uma fábula, mas qualquer um pode falar, sentir, sofrer e amar, basta querer. Essa não é uma ficção, mas tudo pode acontecer.

Encaro a folha em branco e nada me vem. Preciso de uma narrativa. Isso não pode ser tão difícil! Esse relato minucioso de tão árdua e sofrida tarefa já é, por si mesmo, uma narração. Que estou eu fazendo, senão narrando a você, caro leitor, que nada mais tem a fazer senão ler minhas frases, que nada mais são senão simples interrogações que, mesmo articuladas, parecem ainda não fazer sentido? Essa arte de contar é rara. Mas eu conto.

Creio que seja mais ou menos nesse momento da história que aparece a personagem principal. Peço perdão aos fatos caso eu esteja me precipitando, mas penso que já seja hora dela, a barata, aparecer. Juro que gostaria que ela estivesse em posição de mais prestígio, ao menos para entrar em cena. Mas não. Ela estava de pernas para o ar. Não sei se essa comparação é oportuna, mas eu também estava. Tudo em mim fazia bagunça. Coerência era a última palavra do meu dicionário que, devido à literatura romântica que folheei durante toda a juventude, era extenso. Talvez seja por essa ausência absurda de qualquer razão, que não fiz nada do que qualquer pessoa sã faria em meu lugar. Fiz o contrário. Eu gostava de contrários.

Sei que o meu amor, se estivesse ali, sentiria orgulho da mulher forte que eu era, ou pelo menos demonstrava ser naquele instante. Mas meu amor não estava. Prefiro assim, pra que ninguém pense que me fingi corajosa só pra impressionar. Estava sozinha, mas, ainda assim, não gritei. Não subi em nenhuma cadeira. Não supliquei por socorro. Não pensei em me render. Às vezes paro pra pensar e vejo que, mesmo se quisesse ser um pouco mulherzinha naquele momento, de nada adiantaria. Estava só, a sala era vazia, o bairro era pacato. Não havia cadeira sobre a qual eu pudesse repousar o salto, vermelho e fino que sustentava a minha magreza. Não havia ninguém em toda a Rua da Glória que pudesse ouvir meus gritos agudos de sofrimento e solidão. Não havia nenhum canto da sala que pudesse fantasiar meu medo. Eu teria que ser corajosa, simplesmente porque era a única opção que me restava.
Me aproximei da barata. Observei atentamente cada mínimo movimento das antenas daquela barata. Ela parecia se comunicar comigo e, talvez por isso, eu não pretendia fazer-lhe nenhum mal. Amizade era coisa que eu também não queria. Toda a Rua da Glória já me julgava suficientemente louca, eu não precisaria de mais um atributo de insanidade.

Tive vontade de prendê-la. Não sei ao certo o que faria com um bicho de estimação tão pouco amigável. Eu era só. Mas baratas nunca foram boa companhia. Ou foram? Bem, tanto faz. Ainda que fosse loucura, fui buscar um potinho de vidro, dentro do armário da cozinha. Tive medo de que ela escapasse pela fresta da porta. Já não sabia o quão frustrada ficaria caso me perdesse da barata ou ela se perdesse de mim. Já estávamos, nós duas, perdidas em um universo de almas desertas. E entre tantas almas, houve aquele encontro, cujas emoções em mim despertadas, eu carinhosamente chamei de amor. Qualquer um que tenha lido até aqui, concordaria que eu tinha sangue de barata.

O pote que encontrei era feito de um vidro bem espesso e tinha tampa azulada. Ele havia chegado à nossa casa na semana anterior, cheio de doce de leite. Mas agora ele estava vazio no armário da cozinha, esperando se fazer necessário para guardar qualquer bobagem em um dia qualquer. A barata não era uma bobagem. Era uma barata que estaria ali dentro, nos próximos minutos. Bom, pelo menos era isso que eu esperava. O mundo dava voltas. Nenhum pote guarda somente um tipo de doce. Aliás, nenhum pote guarda somente doces. Somos todos potes, à espera de algum conteúdo. O meu conteúdo era, portanto, um animal de aproximadamente cinco centímetros de comprimento, seis longas patas e um par de antenas que, aos olhos do mundo, eram asquerosas. Mas não aos meus olhos. Os meus olhos nunca foram os olhos do mundo.
Retornei ao quarto com o pote em mãos. Não estava pronta para dar um golpe, mas para propor uma amistosa relação. O que tínhamos em comum, repito: era o nosso sangue, o sangue de barata.

Não encontrei minha amiga no chão. Comecei a me desesperar. Me sentei perto da porta para esperar. Ouvi um barulho que se assemelhava a qualquer material frágil e quebradiço sendo esmagado. Foi naquele momento que experimentei a sensação de ser assassina. Não por maldade ou vontade própria. Acho que não. Mas, entenda, caro leitor: tentei mudar o destino da barata, mas não foi possível. Seria recriminada caso propusesse a ela uma amizade. Tive que matá-la, como em todos os casos de barata, ainda que involuntariamente. Insetos nunca têm final feliz. Nem eu.