quarta-feira, 20 de junho de 2012

DEPOIS DE OLHAR PRA TRÁS



E então ela foi. Despediu-se da vizinha que havia curado seu umbiguinho quando bebê e também dos velhos amigos. E fechou as malas como quem vira a página. Olhou a casa de antes, quase sem mobília. Percorreu, mais uma vez, a rua em que morara desde o primeiro dia de vida. E supôs que, dali em diante, nada seria como antes. O futuro vinha devorar o passado, ainda que o ontem estivesse ainda latejando na memória feito brasa. Era como se ela estivesse na metade do caminho. Entre o antes e depois. Entre a felicidade certa e aquilo que ela esperava da felicidade. Entre aquela vida assimilada, digerida, e aquele gosto assustador da novidade. De repente, percebeu que dentro dela algo também mudava. Mudava de novo. E voltava a mudar. E mudava tão rápido que parecia impossível dizer, com clareza, em que ela se transformava. Ela crescia. E não se continha mais dentro de si. Crescia de dentro pra fora. A rua de casa e o próximo mês passaram a ser limitados demais pra seus planos.

E ela foi. Mas só depois de olhar pra trás...

segunda-feira, 11 de junho de 2012

DEPOIS DE VOCÊ

cena do filme "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain"

Depois de você, nunca mais quis que o tempo parasse. Já não conto os segundos durante uma espera. Já não espero com a melhor roupa, o melhor sorriso, o melhor abraço. O melhor de mim que eu tenho hoje pra oferecer é muito menos do que aquilo tudo que parecia só existir se fosse pra você. E que, pela infelicidade de ter logo te escolhido, tive que guardar só pra mim.

Nenhuma ausência me deixa mais com aquela saudade insaciável, incontrolada e maior que eu. Depois de você, nenhum outro amor me fez cometer loucuras. Nunca mais tentei compensar culpas alheias com possíveis deslizes meus. Já não perdoo crimes graves por medo da perda. Já nem sequer temo a perda. Passei a entender o amor como passagem.

Depois de você, nunca mais insisti para que alguém me amasse ou ficasse um pouco mais. Pra ser sincera, nunca mais quis tanto que alguém ficasse um pouco mais. E me lembro de você a cada vez que encaro essa minha ferida fechada. Essa minha hemorragia mal estancada. Esse meu desespero contido. E de pensar que você não sabe nem da metade das minhas cicatrizes...

Sabe aquelas promessas velhas de que eu estaria à sua espera? Sem querer, acho que cumpri. Tentei esquecer, não ligar, não pensar ou não te desejar desse modo tão incandescente. Mas mesmo em silêncio e depois de tantos anos, sinto que de algum modo minha alma ainda espera pela sua. E, do seu modo, talvez você também ainda espere por mim.

Apesar dessa espera mútua e calada, sei que não estamos prontos um para o outro. Não estamos preparados para um amor tão maior que nós. Não agora. Não nessa vida.

terça-feira, 5 de junho de 2012

A ESTRANGEIRA

Porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade)


De uns tempos pra cá, passei a me sentir dolorosamente conformada quanto à minha condição no mundo. Estrangeira.

Não é fácil aceitar as próprias lacunas e assimilar as ausências. Não é simples calar desejos de dias melhores alimentados por anos a fio. A conformação, pra mim, nunca foi um processo rápido e muito menos indolor. Mas eu consegui. E compreendi, embora não sem dor, que o que eu quero não tem nome. E que talvez nem mesmo exista.

Tenho uma coleção de medos estranhos e autopunições que me rondam. Sou ansiosa, tímida e sedentária. E mesmo no meio de pessoas intensas e interessantes e inspiradoras, sempre vejo detalhes que parecem invisíveis. E mesmo envolvida por amores bonitos, questiono mais do que deveria e cometo uma espécie de autossabotagem. E mesmo consciente dos desafios a que meus sentimentos exagerados me submetem dia e noite, ainda me pergunto se estou mesmo conseguindo digerir. Ou me digerir. E mesmo sabendo da poesia que grita dentro de mim, ainda tenho a ligeira impressão de que seria melhor calar a inspiração que produz tantas frases censuradas pela praticidade do mundo.

Mas nada disso me faz maior, tenha certeza. Não sou intocável, mas sou arisca. Às vezes arranho sem querer. E me arranho também. E fico assim, em carne viva. Ardendo no toque. Mas não é proposital. É verdade que vivo me comprimindo, mas não é por prazer. É quase uma tortura interna me aceitar sem dizer tudo o que está por dentro. A vontade é virar a página e te mostrar o que ainda não foi dito, mas existe mesmo assim. A vontade é tornar tênue a linha que divide o que está dentro e o que está fora. Mas parece sempre complicado demais.

Apesar de tudo, sobrevivo feliz. Mas por que ser tão estrangeira? Por que sempre esperar por algo que está além? Por que insistir em desconstruir o óbvio e o pré-estabelecido e o normal e o simples e o que é perfeitamente aceitável? Porque simplesmente não é opcional...