segunda-feira, 19 de agosto de 2013

QUANDO PASSEI A SER NÔMADE

Há pouco mais de um ano e meio, eu viajava quase 600km chorando baixinho no banco de trás. Pra mim, naquele momento, ir pra São Paulo era ir para o mundo. E mesmo ir pra Campinas, cidade que nem é assim tão grande, era como trocar a simplicidade da minha vida pacata por um desafio que me vestiria com as cores da coragem, ainda que por dentro eu fosse frágil. Eu me despedia do estado de montanhas tão altas quanto as que eu ousei transpor quando mudei toda a minha vida por um sonho. Eu dizia adeus à cidade em que nasci, com seus pouco mais de 400.000 habitantes e com sua gente vivendo tão despretensiosamente. Aquela despretensão que por anos me deu a nítida sensação de ser estrangeira dentro da própria terra. Eu tinha pretensões demais pra caber ali.

Naquele momento da partida, minha coragem murchou. Mas era tarde. Era tarde e eu, no fundo, nem cogitava voltar atrás. Porque minha felicidade esteve sempre um pouco mais a frente, e essa perseguição do que está adiante talvez seja o que me faz seguir na estrada de pedras muitas vezes sem perceber que tenho os pés feridos. Eu saía de Betim com a certeza de que jamais moraria ali de novo. Por incrível que pareça, não era uma certeza arrogante. Era uma certeza doída e insegura, de alguém que por alguns momentos gostaria de ter sonhos miúdos, só pra conseguir caber ali e não sofrer. Mas o amanhã me convidava para algo que estava além daquela rua, daquele bairro, daquela cidade. Talvez fosse só a minha mania de amar o que está distante física e temporalmente. Talvez fosse só a minha insistência em colecionar rupturas. Talvez fosse só esse meu hábito tolo de picotar o tempo em fases e acreditar que de algum modo estou chegando mais perto, fingindo não perceber que o ponto mais alto está sempre se escondendo de mim. Talvez fosse só minha teimosia de transferir o sorriso aberto para o porvir, confiante de que o amanhã é sempre mais bonito. Talvez fosse só minha saudade do futuro desejando algo que ainda não foi e que, justamente por isso, só se traduz no lirismo.


Mas é também profundamente lírica a dor. E é por isso que nunca me privo do direito nobre e honesto de chorar. No fim, aqueles 600km de choro contido no banco de trás me fizeram entender que dali em diante eu perderia um pouco da noção de que algum lugar me cabe ou pode um dia caber. Dali em diante eu me renderia ao lema das grandes cidades, onde cada um é só mais um átomo desordenado e apressado. Dali em diante, o sorriso largo não só moraria permanentemente no amanhã, como também viveria na próxima esquina. Campinas não é minha casa, mas Betim também já não é. Essa sensação de não pertencer me faz tão estrangeira quanto antes, e de certo modo turista. Nômade no mundo. Sonhando sempre com uma rota mais distante e mais difícil de percorrer. Querendo sempre morar num canto para além do horizonte que minha vista consegue alcançar. Esperando sempre de mim uma coragem tamanha para olhar pra trás - ainda que com os olhos úmidos – e partir. É que nesses olhos úmidos navegam barcos carregados de desejos sem colete salva-vidas. Tenho essa preferência quase masoquista pelo afogamento, porque nunca gostei de estar na superfície. Dentro desse barco, à frente dessa tripulação de medos contidos, estou eu. Talvez um pouco confusa com as rotas, confesso. Mas definitivamente não estou à deriva. 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

INESCRUPULOSAMENTE IMPERFEITA E INDECENTE

Era uma manhã de domingo e ela tentava, de algum modo, se libertar da culpa. Era tão difícil cortar pela raiz algo que estava ali desde sempre, que nasceu ali, intocável e naturalizado dentro dela. Era como um aborto. Mas até livrar-se da culpa parecia trazer a tona outras culpas. A proibição latejava na memória e raspava o corpo. A culpa não tinha pés de barro.

A culpa por ser mulher. A culpa por ter sido uma criança esquisita. A culpa por detestar o próprio nome. A culpa por não ser igual aos pais e nem se parecer fisicamente com a mãe. A culpa por ter decidido ser atriz aos quinze anos e por ter saído de casa tão cedo. A culpa por transar no primeiro encontro e por não receber ligação no dia seguinte. A culpa por colecionar amores que não dão em nada. A culpa por ser olhada com malícia pelos olhos da rua. A culpa por ser mais bonita que a irmã e menos bonita quanto a colega de trabalho. A culpa por nunca receber um grande papel. A culpa por ser advogada por dinheiro e atriz por amor nas horas vagas. A culpa por ser ligeiramente ácida pela manhã e por não saber abraçar apertado. A culpa por nem sempre saber o que dizer e por não ter a solução na ponta da língua. A culpa por não sentir prazer com o marido todas as noites. A culpa por desejar a pele de outro homem e por saber que seu marido também deseja a pele de outra mulher. A culpa por sair de casa antes mesmo das crianças acordarem e por não chegar a tempo de dizer boa noite. A culpa por não ser a melhor mãe do mundo. A culpa por não cozinhar bem. A culpa por não ter dinheiro para matricular a filha no cursinho de balé da escola. A culpa por não aparecer sorrindo em fotos de família. A culpa por, vez ou outra, desejar em silêncio antes de dormir uma vida que não a sua.

Ela era ao mesmo tempo árbitro cruel e réu confesso. Era juíza de si mesma, regida por leis que ela jamais aceitou. Seguindo um contrato não assinado, só por conveniência ou comodidade. Mas naquela manhã de domingo ela não queria se culpar nem mesmo por não se sentir mais culpada. Queria tudo, menos o martírio. Só queria sair da cela. Só queria deixar de ver a sombra das grades desenhadas sobre o seu corpo ao por do sol.

Ela abriu a porta da sacada e rodopiou quinze vezes em cima da cadeira giratória do escritório com os pés erguidos sem sapatos. Ela enlouqueceu às claras. E mostrou as meias coloridas por baixo dos sapatos. E mostrou os cabelos desdenhados para além do coque outrora impecável. E mostrou o sorriso imperfeito por trás daquele tom sóbrio de batom. E mostrou a louca que existia escondida dentro daquele terno de linho opressor. E esvaziou-se da culpa. E viu aquelas grades derretendo. E viu aquele caldo preto escorrendo pelo ralo sem dor. E sentiu aquele cheiro de ferro fundido. E sentiu aquele gosto de fel. E soube que dentro dela brotava um sonho doce em algum lugar novo. E soube que naquele corpo pousava uma alma muito mais livre e inescrupulosamente imperfeita e indecente. E sorriu um sorriso bêbado e desengonçado – sem culpa alguma.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

IMPERMANENTE

Depois que meu coração bateu asas pela primeira vez, gostei tanto de voar que decidi não mais pousar. É bobagem, eu sei, mas parece que, se eu desacelerasse, cairia imediatamente e não voaria mais. Então vivo cortando o vento e desenhando no céu o meu balé. É que não aprendi a permanecer. Não fui feita pra ficar.