segunda-feira, 24 de setembro de 2012

COMO SE FOSSE POSSÍVEL


Era uma quarta-feira asfixiante de março. Eu entrei na sala 10 do prédio azul e a nossa história volátil começou a ser narrada dentro de mim. Em cinco segundos captei tudo. Uma sala grande com cadeiras novas, quadro branco, dois ventiladores de teto, vinte e cinco alunos e um deles era você. Você e seus olhos puxados (pela primeira vez na vida eu amava olhos puxados), sua pele no tom ideal. Você, sem nenhuma razão, me pareceu diferente dos outros. Sempre conferi ao diferente um significado quase onírico. E, talvez por isso, gostei de você antes de tudo. Sempre fui assim. Esse meu sexto sentido sempre me diz previamente de quem gostar.

Era um típico “primeiro dia de aula”, e nós obviamente levaríamos uma hora nos apresentando uns aos outros. Ficou definido que falaríamos nossos nomes, gostos e ideais. Seu nome simples de duas sílabas e cinco letras com acento agudo na última vogal me pareceu absolutamente sonoro. Sua voz quase doce e quase imponente, tangendo o ideal, cambaleando entre o que se espera de um homem e o que se espera do amor. Seu ideal era ser feliz. Tão simples e tão aceitável. Eu ali, prolixa, tentando encontrar em algum canto perdido um ideal que fosse suficientemente denso e você sorrindo como se fosse possível ser feliz ali mesmo. Eu me rendi.

A certeza de que você podia significar algo bom pra mim veio quando percebi que você me olhava de um jeito absurdamente indiscreto como se quisesse um pouco mais de mim a cada segundo. Mas tudo isso talvez não passasse de ficção. Eu te olhava do alto da minha pilha de ilusões. Na sexta, eu me sentei ao seu lado porque gostava de você desde a última quarta-feira. Eu escrevi no seu livro porque tinha a letra mais bonita. Eu te dei um sorriso quase tímido, como se compactuássemos um segredo, como se conversássemos sem palavras.

Na semana seguinte, a sala 10 me pareceu muito mais fria e desconfortável. E na próxima, e na próxima... Você tinha sido transferido de turma e eu não sabia mais onde te encontrar. O prédio azul era enorme e você podia estar em qualquer lugar. E a vontade dilacerante de te ver me asfixiou muito mais do que o calor daquela quarta-feira em que eu descobri que ser feliz podia ser muito mais simples do que eu supunha.

Dali em diante, só te vi de relance. Descendo as escadas enquanto eu subia.  No ponto de ônibus do outro lado da avenida. Na saída do restaurante enquanto eu entrava. Mas quer saber? É melhor assim. Você ficou em mim como alguém que podia ser mais. Alguém que ouvia e lia e assistia tudo o que eu ouvia e lia e assistia. Alguém que tinha os traços que eu gostava. Que tinha a voz que eu queria ouvir. Que me olhava indiscretamente sem fazer ou dizer mais nada. Alguém com quem eu almoçaria qualquer dia, nem que fosse só pra falar de todas aquelas coisas de que nós gostávamos e que nos tornavam diferentes dos outros de um modo tão sutil. Alguém de quem eu posso falar sem medo. Você não vai ler este texto, e é justamente por isso que falo de amor enquanto falo de você como se fosse possível te amar sem saber nada a seu respeito além do que já foi dito e como se ser feliz fosse realmente tão simples assim.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

NA BALADA

São sete da noite de uma quinta-feira fria na tal cidade grande. Depois de horas analisando todas as peças brancas do armário, opto por um vestido um pouco acima dos joelhos em laise. É uma festa de engenheiros, o que deixa claro que não posso ir vestida como bem entender. Eu já equipei a bolsa e o coração. Mas o ingresso não deixa dúvidas: início às 23h. Eu não sabia o que fazer entre sete e onze da noite. Assisti a algumas porcarias na tevê até as nove. Certo, agora já é um bom momento para começar a maquiagem. Corretivo, base, pó, blush, lápis, sombra, rímel, batom, gloss. Mais pó. Mais rímel. Ainda me reconheço? Sim. Então mais sombra. Tudo certo. Ainda são 21h30 e eu não sei o que fazer entre nove e meia e onze da noite. Entro na página do facebook destinada à balada só pra passar o tempo. Mais de quatro mil pessoas com presença confirmada. Nunca estive no Campinas Hall, mas por alguma razão não acredito que lá seja espaçoso o suficiente pra comportar quatro mil pessoas com conforto. Mas quem é que liga pra conforto afinal?

Agora são 22h e eu começo a pensar se não seria muito mais legal estar de pijamas e pantufas ao invés de usar um vestido sem mangas numa noite tão fria. Evito tentar responder. Minha amiga disse que ir com roupa de inverno na balada é coisa de velho. Por mim, eu iria. Por dentro tenho sessenta anos desde que nasci. Mas, afinal, preciso tentar mudar. Pra começar, preciso esquecer de que estou com frio. Agora são 22h30 e ainda não está nem perto da hora de sair de casa. Afinal, eu tenho a sorte (sorte?) de morar a cinco minutos do tal Campinas Hall, o que só atrasa a minha saída e aumenta minha agonia. Daqui a trinta minutos os malditos portões vão se abrir e eu vou entrar louca pra ser feliz ao lado de quatro mil pessoas. Daqui a pouco minha amiga vai me ligar pra avisar que já saiu de casa e eu farei o mesmo. Os portões mágicos vão se abrir e eu vou experimentar a felicidade mais falsa do mundo. Não, nada disso. Eu também posso ser feliz como todo mundo.

São 23h em ponto. O telefone não toca. Começo a morrer de vontade de limpar essa maquiagem toda, tirar este cheiro forte de perfume doce da minha pele e dormir. Sempre tive sono cedo, não nasci pra essa vida. A quem estou tentando enganar? Daria tudo pra estar na minha cama, onde eu certamente seria feliz do meu modo. Finjo que não ligo pra nada disso e volto a vasculhar a página do evento no facebook. Agora já são quase cinco mil pessoas confirmadas, o que desperta em mim uma claustrofobia que sequer me pertence. Os organizadores da festa acabaram de postar na página e disseram que vão vender mais ingressos na portaria. Eu me desespero. Que nada! Tudo certo. São 23h25 e o telefone finalmente toca. Minha amiga está a caminho e agora eu já não posso desistir. Minha maquiagem já não está bonita como há duas horas. Vai ser legal, eu digo pra mim mesma um milhão de vezes. Li em algum lugar que uma mentira dita muitas vezes vira verdade. Quem foi que disse isso mesmo? Claro, um dos líderes políticos do nazismo. De que isso importa agora? O nazismo, a mentira, a verdade... Não importa. Pego minha bolsa e vou ser feliz. Mas espera. Vou levar uma blusinha de manga comprida, só por precaução. Dizem que uma mulher prevenida vale por duas. Vou estar com o coração em dobro nesta noite. Mas espera. Não sei se lá tem comida e não posso ficar mais de três horas sem comer. Ataco o pote de barras de cereais e coloco no fundo da bolsa, só por precaução. Minha amiga também disse que comer na balada é coisa de velha. Saio de casa com o coração na mão. No fundo, uma vontade angustiante de trocar a pista de dança pelo meu colchão. Mas eu estou maquiada com rímel, batom e vontade de ser feliz como todo mundo.

Já é quase meia noite e eu estou finalmente “na balada”. Os portões mágicos já estão abertos e a fila pra entrar é muito maior do que eu supunha. Na fila feminina, os vestidos são aproximadamente do mesmo comprimento daqueles que eu usava quando tinha dez anos. Os saltos 15 fazem com que eu, que não chego a 1,60m e uso um sapato de pouco mais de quatro centímetros, me sinta uma anã que, por sorte, cresceu um pouquinho além das expectativas. Ficamos eu e meu ingresso esperando a hora de entrar.

Pronto. Já é meia noite, hora de festa de gente grande começar. Por um minuto, sinto saudades das festas infantis que começavam às sete da noite e tinham salgadinhos e docinhos à vontade. Queria trocar o open bar por open food. Mas agora já estou dentro da festa e não há como voltar atrás. Das cinco mil pessoas com presença confirmada, já chegaram umas duas mil e a pista já está cheia de corpos em movimento. Eu sou só mais um átomo deste organismo. Paguei R$25 e não tenho direito a sequer um metro quadrado para me movimentar. Tem uma dupla no palco usando calças jeans mais justas do que as minhas e tocando aquilo que costumam chamar de sertanejo universitário. As pessoas parecem ter as letras das músicas na ponta da língua, mas eu, que obviamente não sou deste planeta, não conheço sequer um refrão. Começo alternando o peso do corpo entre uma perna e outra. Aos poucos, solto os ombros, mas não demais. Pessoas passam por mim o tempo todo. No início, fico incomodada a cada vez que pisam no meu pé e mais ainda quando não pedem desculpas. Depois me acostumo. Tento fazer um comentário qualquer com minha amiga, mas ela não escuta nada porque o som está absurdamente alto. Repito. Ela continua não ouvindo. Deixa pra lá. Conversar pra que? Bobagem. Estamos na balada!

Encontro um amigo que, como eu, parece um pouco desconcertado. Tentamos conversar, mas eu mal consigo pensar em qualquer coisa com uma música tão alta socando meus neurônios. Eu me desculpo, explico a velha história de que por dentro tenho sessenta anos, que não sei o que estou fazendo naquele lugar e digo que nos falamos melhor em outra oportunidade.

Já é 1h30 da manhã e estou cansada, com sono e com fome.  Um cara vem pedir pra dançar comigo. Imagina! Eu pisaria no seu pé, justifico. Eu não sei dançar, insisto. Tá, eu detesto dançar, pronto. Eu não mordo, ele diz. Tento me afastar. Perto de mim, casais se formam em menos de cinco minutos. No caminho para o banheiro, que é quase como uma viagem com trânsito congestionado, um homem de mais ou menos 1,80m, braços fortes e beleza viril barra minha passagem com o corpo e diz alguma coisa que eu não entendo. Peço pra repetir. Será que a gente podia conversar? - ele pergunta. Não, definitivamente não vai dar pra conversar. Eu mal escuto o que você diz. É uma pena. É só uma conversa, ele insiste no meu ouvido. Sou teimosa e adoro autossabotagem, então digo que não dá e sigo em frente. É claro que não demorei muito pra me arrepender, mas afinal o mundo não está perdido. Estou na balada.

No fim das contas, já estava mexendo o corpo de uma maneira menos desajeitada. Por incrível que pareça, já não estava mais tão chato. Vou até o bar pegar uma água. Preciso gritar umas três vezes que quero água pra que a garçonete escute. Quando ela finalmente escuta, parece não acreditar. Água? Água pura? Bem, pensando melhor, pode ser água com açúcar pra acalmar os nervos. Mas vamos sintetizar o pedido porque dialogar neste lugar beira o impossível. Sim, água pura. Recebo outra proposta pra conversar. Bem, o que há de mal em conversar? Pois bem. Vamos conversar. Antes de querer saber meu nome, o cara quis saber por que eu bebia justamente água. Depois de filosofarmos um pouco sobre água e vodka, finalmente chegamos à parte de trocar nomes. Mas cá entre nós, são três da manhã e pra mim chega. Eu já me diverti demais e é hora de ir pra casa. Eu me despeço dele tão subitamente quanto a ideia de ir embora me ocorreu. E me despeço da minha amiga, que ainda vai dançar até cinco da manhã em cima de um salto de quinze centímetros.

Volto pra casa pensando na festa. Foi legal. Podia ter menos gente, é claro. A música bem que podia estar mais baixa. E devia ter uma mesa de salgadinhos. De resto, foi tudo lindo. Eu bem que podia ter me esforçado um pouco mais e conversado com aquela beleza viril que parou na minha frente. Podia ter dançado com alguém. Tudo bem, dançar sertanejo universitário não é lá minha especialidade, mas eu bem que podia ter me entregado mais. Volto pra casa revendo meus conceitos. Não preciso ser assim tão séria. Não preciso passar o resto da vida presa a convenções, tentando separar minimamente o que é e o que não é aconselhável. No mês que vem o Campinas Hall talvez me veja novamente. E eu juro que vou ser feliz. 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

INTUIÇÃO



Já não sei dizer por quantas vezes equivocadas eu te disse “adeus”. E você, de um jeito ou de outro, quase sem querer, sempre voltava. Nem que fosse pra me pedir um último beijo, que obviamente jamais seria o último. Éramos um do outro e isso estava comprovado. Essa nossa posse recíproca era nossa lei inviolável. Pertencíamos um ao outro em cada célula, em cada veia, em cada segundo, em cada compasso. E já era exatamente assim antes mesmo de eu suspeitar que te amaria um dia.

Mas não me rendi de primeira. Fui fiel ao meu signo, ao meu humor doce e ácido, ao meu gênio indomável, ao meu coração cheio de farpas. Mas você me domava de um jeito infinitamente soberano. E me dominava como relógio em pulso de gente pontual. E me dominava como os comerciais de TV em sala de capitalista. E me dominava como música alta em noite de festa. Não. Você me dominava de um jeito absurdamente superior a tudo isso.

Mas não importa. Mesmo depois de tanto falso adeus, de algum modo, eu sabia que aquele seria o último. Sabia que estava molhando o seu rosto com lágrimas pela última vez. Sabia que meus olhos acompanhavam a sua partida decidida até o final da rua pela última vez. Mas, sobretudo, sabia que o amor ficava.