segunda-feira, 30 de junho de 2014

LITERATA DEMAIS

Tenho esse defeito fatal de estar sempre rendida diante do que pode ser posto em palavras. Tenho essa mania tola de ser narradora da minha própria vida, na esperança de que assim ela seja pautada pelo mais intangível dos lirismos.

É essa a minha sina: preciso dizer. Preciso ouvir. Preciso contar histórias. Minha alma é um quarto escuro cheio de letras perdidas por entre medos, amores e sonhos que colidem o tempo todo.

Não aprendi outros sinais que não a palavra. Não te reconheço fora da minha estrofe. Só a linha materializa o nosso amor, mais nada. E, entre uma linha e outra, fica sempre aquilo que eu não posso ou não devo dizer, mas que você já sabe. E, se você sabe, é porque compactuamos essa narração indizível que meu coração arrisca. É porque não estou escrevendo essa história sozinha, e porque dentro de você há também algum lirismo que os outros não veem. Eu vejo. E me deslumbro.

Desconfio seriamente de que não nos amamos. Acho que só nossas poesias se amam e se rimam. Nós não. Nossos caminhos reais não se cruzam porque somos poetas e sabemos que só será lírico enquanto for irreal. Talvez seja mesmo tudo irreal. Talvez seja só o meu narrador, perdidamente apaixonado pelo seu, que se perdeu em algum verso do seu olhar.

sábado, 14 de junho de 2014

À MERCÊ

Quando comecei a escrever aqui, no auge da pré-adolescência (e lá se vão dez anos desde esse começo!), eu era definitivamente a mais ingênua das criaturas. Ainda acreditava na religião, na TV e nas pessoas. Ainda naturalizava e legitimava os papeis que eram socialmente condicionados pra mim sem perceber que tudo, incluindo aí a minha ingenuidade infantil, foi construído. Ainda buscava ser alguma coisa da qual eu me orgulhasse, e achava que conquistaria isso definindo quem, afinal, eu era. Porque eu realmente acreditava ser uma pessoa definível. Bem vinda eu à famosa crise de identidade típica dos ingênuos, categoria na qual eu definitivamente me inseria com maestria.

É estranho dizer o que se é, uma vez que nunca somos quem pensamos que somos porque estamos sempre tentando ser a melhor versão que podemos de nós mesmos. Ou talvez porque a versão que tentamos mostrar ao mundo sequer seja a melhor, já que até o conceito de melhor é relativo e socialmente construído. A versão que exibimos é apenas aquela que julgamos mais apreciável àqueles que queremos que nos apreciem. Estou errada?

Hoje, depois de dez anos ouvindo essa conversa de poeta sobre se inventar e se reinventar em nome da arte e sobre ser vários, me percebo muito menos rotulável do que podia supor. Estou absolutamente convencida de que meu lado felino me deu sete vidas em uma só, e de que nunca, jamais me enquadrarei em um estereótipo, por mais que tente.

Não sou a mocinha que pareço nessa foto. Não sou a mulher moderna e segura e independente que tento parecer para as minhas amigas quando falo dos meus planos de morar sozinha em um apartamento ótimo e ter um emprego ótimo e um carro ótimo e – é claro - um gato tão antipático quanto eu de estimação. Também não sou a mulherzinha que encarno quando movo mundos e fundos e investigo e pesquiso até no google para saber se o cara que eu gosto também gosta de mim ao invés de simplesmente perguntar pra ele. Até porque, caso você não tenha reparado, no mundo de pessoas rotuláveis e coerentes (e, portanto, irreais), a mulherzinha jamais poderia morar no mesmo corpo da mulher moderna e segura e independente. Pra quem só quer um gato antipático de estimação, não me parece natural sentir tanto medo de gostar de alguém que, por acaso ou azar ou sorte, não gosta de mim. Certo?

Depois de deixar pra trás toda a crise de identidade da adolescência, eu enfim descubro que meu querido “eu” é absolutamente vulnerável às circunstâncias. E, nessas circunstâncias, incluo com letras garrafais o amor, capaz de me transformar na mais sofrida das mulherzinhas que esperam por um príncipe encantado. Não adianta dizer que já passei dessa fase. Não adianta dizer que não tenho mais quinze anos. Enquanto eu tiver um coração, estarei totalmente susceptível a todos os papeis cafonas aos quais nos submete o amor. Enquanto meu coração bater, ainda vou torcer pra que ele venha falar comigo no whatsapp, ainda vou olhar o horário da última visualização, ainda vou abrir uma a uma as fotos em que ele foi marcado no facebook. E depois, quando minha fase mulherzinha passar, vou voltar a sonhar com meu gato antipático e com minha vida ótima e a julgar todas as esposinhas do mundo. E, orgulhosa, vou jurar que nunca, jamais entro de branco na igreja, que não acredito no “pra sempre” e que estou bem assim, obrigada.

Mas hoje, consciente de todas as minhas caras não coerentes entre si, me pergunto: quem sabe por volta dos trinta eu não encontre alguém que me exiba uma versão de si mesmo que me pareça apreciável e me case e tenha gêmeos e uma casa grande e uma vida não menos ótima? É possível que aos trinta o gato antipático já não seja exatamente a ilustração perfeita para a minha vida ótima, porque talvez o meu conceito de uma vida ótima já não seja o mesmo daquele que eu exibi com orgulho para as amigas, simplesmente porque assim me legitimava como uma mulher do século XXI ou, sendo mais pretensiosa, à frente de seu tempo. Talvez aos trinta eu já não queira tanto estar à frente do meu tempo, e talvez já tenha me cansado de revezar entre mulherzinha e mulher independente, porque essa indefinição também cansa. Talvez o sossego, que hoje me atemoriza, um dia me pareça de algum modo apreciável.

Ou talvez não. Talvez eu nunca me canse do amor e de todas as suas variáveis. Talvez eu goste mesmo de ver a mulherzinha e a mulher independente lutando entre si dentro de mim. Talvez eu goste de me sentir ridícula a cada vez que me apaixono e de me sentir segura a cada vez que me gabo por estar solteira e - salvo alguns momentos de pânico - feliz.

A consciência de que sou várias é libertadora porque me isenta da coerência e, ao mesmo, aterrorizante, porque me deixa à mercê do outro e do acaso e do momento e do humor e do dia do mês e da lua cheia e do tarô e da sorte e - ó céus - da vida enfim. Não estou no volante. Eu escolho os caminhos, mas não controlo os caminhos que escolho. E a vida, essa linda, há de me trazer um monte de surpresas que eu nem imagino e inserir no meu caminho pessoas que colocarão em risco vários dos meus planos. Que delícia é viver!

segunda-feira, 9 de junho de 2014

ANA

Ana tinha dezesseis anos quando decidiu cursar Cinema porque queria contar histórias. Porque queria dizer às pessoas o que ingenuamente julgasse ser verdade, sem perceber o quão impalpável era seu sonho. Escolheu ser artista porque não se preocupava em ter muito e porque só entendia a vida tecida pelo encantamento. Ana colecionava quimeras.

Ana desistiu de ser artista aos trinta anos. Mais ou menos na mesmo época em que o aluguel subiu, quando já tinha usado todas as suas roupas mais de trinta vezes, quando o tempero do restaurante da esquina se tornou enjoativo, quando se cansou de calçar os mesmos sapatos todos os dias, quando as contas em cima da mesa começaram a empilhar. As quimeras agora empoeiram junto da coleção de vinis, que Ana já não escuta por mera falta de tempo.

Ana tem quarenta e cinco anos, um apartamento mobiliado, um carro razoável, um closet e mais sapatos do que dias no mês. Ana tem um marido, dois filhos, passagens compradas para as férias na Disney e reserva num restaurante da Augusta para a comemoração das bodas de cristal. Ana tem tudo: casa, carro, mobília, família, uma conta no banco e, secretamente, uma pontinha de inveja da menina que era aos dezesseis.

sábado, 7 de junho de 2014

MARIA

Maria já não tinha quinze anos, mas continuava vivendo como quem brinca na montanha-russa. Olhava o mundo do alto da sua pilha de quimeras. Ela queria sentir o sol a pino queimando a pele. Queria amar só por hoje. Queria o clímax do que quer que fosse. Queria apenas a primeira vez. 

domingo, 1 de junho de 2014

EM ALGUM LUGAR DO ETERNO

“Não espere nada de mim” – ele disse antes de quebrar a minha redoma. Eu não sabia lidar com aquela despretensão. “Leve” – ele me pediu antes de me beijar. Nunca tive uma alma leve, é o que eu teria dito se houvesse algum intervalo de tempo entre seu sussurro e sua boca. Enquanto ele se apropriava de mim, eu tentava inventar um modo de compreender que a vida podia valer a pena só por aquele instante. Me causavam vertigem todas aquelas sensações não planejadas, mas pouco a pouco fui deixando de me pertencer de modo tão rígido e me permitindo estar à serviço do instante sem me preocupar se tudo aquilo seria ou não recriminável. Suas mãos deslizavam desmistificando minha cintura. Comecei a me deixar levar por aquele amor que não exigia nada de nós. E eu vi escapar um sentimento bonito e novo de dentro de mim, saindo por alguma fresta que ele abriu sem o menor esforço. Me permiti estar à mercê das nossas almas puras e dos nossos corpos curiosos. Sem ter o que esperar, ficamos ali, presos naquela iminência quase adolescente a que nos submetia o agora. Eu também já não queria ter o que esperar. Eu também já não precisava do amanhã como o destino mais óbvio. Eu tinha entendido que nós não tínhamos sido feitos para durar, mas que assim, sendo tudo tão fugaz e tão poético, é que permaneceríamos um no outro de um modo bom. Se houvesse o dia seguinte, não teríamos tanto zelo com aquela noite. Se houvesse um plano, nós não cumpriríamos. Então era aquele o nosso pacto. Era daquela recordação que precisávamos. E o nosso reencontro ficaria assim, perdido em algum lugar do eterno.